terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Minhas Póstumas Lembranças

Meu nome é Donizete. Tenho 31 anos e vou contar a vocês toda a história da minha vida, a qual não pude ter a proeza de concluir. Morava na Rua dos Gansos número 119, sempre tive uma vida corrida.

Tinha um caso com um mísero comerciante que trabalhava próximo à minha casa, de nome Roberto. Encantei-me por ele, rapaz alto, robusto, cabelos longos e estatura forte como o tronco de uma árvore que dá frutos.

Passado algum tempo, Roberto começou a freqüentar minha casa, daí pra frente já estávamos totalmente íntimos um ao outro. Ele, todo carinhoso, sempre chegava me abraçando, dando-me beijos gelados que arrepiavam a alma. Trabalhava das seis da manhã às seis da tarde. Ficava aflita, louca pra que as horas passassem rápido. A fim de encontrá-lo novamente, mas parecia que o tempo estava contra mim.

Ficamos assim durante muitos meses, chegamos a completar um ano e meio de união. Mas minha vida começou a mudar quando viera morar ao lado de minha casa uma família de nômades, que encontrara ali mais uma de suas moradas. Via-se uma mulher, um homem, aparentemente casados, e mais algumas crianças, supostos filhos.

Fomos visitados pela nova vizinhança, demos boas vindas a eles e mostraram ser boa gente. Porém, algo a mais aconteceu, acontecimento este que fizera com que Roberto me convocasse para uma conversa após o término da visita. Ocorreu que, no momento em que dialogávamos todos assentados na sala, a criança, filha do casal, solicitou-me um copo d’água. Que fui buscar com ímpeto. A criança – como todas – seguiu-me até a cozinha. Ao se satisfazer com o líquido, perguntei-lhe se queria algo pra comer, e sem que eu entendesse, chamou seu pai para que a autorizasse a proposta.

Atendendo ao chamado seu pai não exitou em vir à cozinha atender. Ao chegar, fitou-me os olhos, como se ainda não me tivesse visto. Era um olhar diferente. Eu estava encostada à porta da geladeira e à minha direita encontrava-se um quarto inutilizado, no qual ingressei para disfarçar. A criança sem dizer palavra – apesar de não ter percebido nada –, regressou à sala sorridente. Ao ouvir suas pegadas, achei que seu pai a havia acompanhado. Dei de sair do obscuro quarto.

Quando pensei em colocar meus pés na porta, ele apareceu, tampou-me a única forma de fugir dali, empurrou-me pra dentro e apertando-me na parede, prostrou seus lábios sobre o meu, acariciando-me as pernas. Tentei sair, mas ele era forte, foi então que pisei em seu pé, ele largou-me e disse que voltaria. Para não provocar constrangimento, tentei ficar quieta e sair dali sem que ninguém percebesse nada, mas Roberto acabava de chegar à cozinha e por azar meu, nos vira sair do mausoléu. Saí disfarçando, Roberto voltou à sala conosco, mas resoluto, pensativo e de feição modificada.

Foram todos embora e, após fechar a porta, veio logo pra cima de mim com toda brutalidade de um touro que tenta derrubar o peão em suas costas. Sem falar nada, sem dar explicação para aquela ação, chutava, xingava, amaldiçoava e deu-me um soco na cara, com o qual fiquei em estado de síncope. Quando dei por mim estava caída no chão. Nariz sangrando. Membros arranhados. E sozinha. Eu estava sozinha.

Fiquei o dia inteiro pensativa, triste. Aquele não era o Roberto que conheci. E como se nada tivesse acontecido, ele voltou do efetivo, chegou em casa e deu-me um abraço, fiquei abismada. Como uma pessoa podia fazer aquilo após quase ter matado outra. Como o considerava muito, conversamos, ele me explicou e tudo ficou passado. Fizemos as pazes.

Depois daquele dia ficou com uma pulga atrás da orelha. Mais agressivo em suas falas, totalmente mudado. Sua modificação foi tanta que às vezes chegava e nem comigo falava.
Desconfiei e o chamei para conversar:
– Roberto, o que está acontecendo com a gente?
– Não sei.
– Você diz simplesmente “não sei”?! Desde nossa última conversa você não é mais o mesmo.
– Estou cansado, com sono, e você me vem com esse papo agora? Vou dormir.

Fazendo o que dissera, foi-se. Fiquei chorosa onde estava, acabei dormindo ali mesmo. Quando acordei tive a idéia de segui-lo depois das cinco e meia, antes que terminasse seu horário de pico. Fiquei de espreita na esquina, atrás de uma árvore, donde não poderiam me ver. O relógio marcou seis horas. Ele saiu. Não exitei e o segui sem que me visse. Seguiu no caminho correto de casa, sem olhar pra traz, passos curtos e calmos.

Ao chegar numa rua de três saídas, entrara em uma delas, porém não a de costume – do caminho de casa –, continuou a andar, agora apreensivo, apressado. Antes que a rua acabasse, entrou numa casa rosa situada do lado direito da rua, sem chamar. Corri. Havia uma janela que permanecia aberta, facilitando minha visão. Quando minhas vistas alcançaram o interior da casa, concretizei o que intimamente imaginava. Estava ele aos braços de outra!

Fiquei abismada, desnorteada diante daquela cena. Mas logo tornei a mim e corri louca adentrando a casa. Olharam-me pasmados, ela, sem entender o que acontecia, não disse palavra.
Ele logo me reconheceu:
– Donizete! O que faz aqui?
– Eu que lhe pergunto safado! Como tem coragem?!
A mulher ao seu lado sem entender pergunta:
– O que está acontecendo? Quem é essa louca?
– Ah! Você não disse a ela que é comprometido?

Ele, despedindo-se da outra, puxou-me pelo braço indo em direção à rua. Jogou-me pra fora da casa, caí, chorando, odiando-o. Ele levantou-me e pegando em meus cabelos arrastou-me pra casa. Sem piedade. Como um saco de lixo pesado prestes a ser jogado fora, os transeuntes que presenciavam o fato não podiam fazer nada. Afinal, éramos “marido e mulher”. Chegando em casa repetiu o feito. Deu-me uma tremenda surra. Agora com mais raiva em seu interior.

– Sua vadia! Achas que podes fazer isso? Seguiu-me!
– Não, não chuta!
– Merece muito mais! Além de pobre, negra e ainda por cima mulher! Quer vir reclamar direitos, acha que vão dar-lhes ouvidos?

E assim fez, durante exatos trinta minutos de espancamento. Xingou-me mais! Discriminou-me com todo orgulho e frieza de um político que engana seus eleitores. Foi embora me deixando lá, prostrada no chão, toda ensangüentada.

Fui para o hospital, trataram-me, e como sempre, não fizeram nada com ele. Era normal casos assim. Saí, segui minha vida afastada dele. Mudei de residência. Dias depois fiquei sabendo que me procurava como um filho que anseia em encontrar sua mãe. Sabendo disso tentei ao máximo não me expor. Conheci pessoas novas e, principalmente, um amor novo. Chamava-se Getúlio. Certa vez estava com ele a elogiar as belezas da vida, numa noite de lua cheia.

Ele abraçou-me pela cintura. Beijando meu pescoço, aquele comportamento me lembrou alguém... Mas foi passageiro. Continuou. O local não era visitado e estava quase que totalmente escuro. Vendo que eu já estava às loucuras de excitação, começou a tirar minha blusa, fez o mesmo com o resto da vestimenta. Fiquei com as partes à mostra, e com sua língua, lambeu-me os mamilos vagarosamente. Tirei sua camisa. Enquanto isso suas grandes e macias mãos corriam-me as pernas. Quando dei por mim, já estava de costas pra ele e com a cabeça a altura de sua barriga. Ele fazia movimentos harmoniosos e tesos. Sentia como se tivesse em outro mundo. E inopinadamente, uma sombra atravessou correndo.
Paramos e ficamos a observar, quando surgiu em nossa frente, Roberto.
– O que é isso?
– Saia daqui Roberto, não estamos mais juntos.
– Se não ficas comigo, não ficas com ninguém!

Após dizer isso, Roberto correu em minha direção, e deu-me uma pesada! Fazendo com que eu batesse bruscamente com a cabeça numa pedra que se encontrava atrás de nós. O sangue correu pela valeta que ali existia. Getúlio, ao ver o ocorrido, avançou em direção a Roberto, mas sem sucesso. Ele já havia fugido.

Foi novamente pro hospital, levada por Getúlio, onde a triste notícia foi anunciada a todos: a morte de Donizete. Conseqüência da velocidade a qual caíra e dera fim a seus dias de vida. Roberto, ao saber do homicídio que cometera, apenas entristeceu-se, mas sentiu um alívio, ao concluir que ela não se relacionaria mais com ninguém. Morrera Donizete. Morrera mais uma mulher. Uma mulher negra.

Morri. Certo. Não tive filhos. Na verdade sempre fui morta. Fomos mortas. Éramos mortas. Nunca tivemos o prazer – se é que se pode chamar isso de prazer – de ter uma vida. Com família. Filhos, e, um “marido”. Sim, um marido, e não um assassino!

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